Maria Lúcia Leal e Maria de Fátima Leal
1 Profª Drª do Departamento de Serviço
Social da Universidade de Brasília, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Violes/SER/UnB
e Coordenadora Geral da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e
Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil – PESTRAF,
2001.
2 Pós-graduada em Saúde
Pública (UFRJ, 1984), Bacharel em Biologia (UnB, 1977), Professora Pesquisadora
do Grupo Violes/SER/UnB, Coordenadora Geral da Pesquisa sobre Tráfico de
Mulheres, Crianças e Adolescente para fins de Exploração Sexual Comercial
no Brasil – PESTRAF, 2001, Diretora do Jornal EntreBairros/RN
O tráfico
de pessoas para fins de exploração sexual tem suas raízes no modelo de
desenvolvimento desigual, do mundo capitalista globalizado e do colapso do
Estado, não só do ponto de vista ético, mas, sobretudo pela diminuição do seu
potencial de atenção à questão social.
Nesta
perspectiva, tratar do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual exige
que se tenha a convicção de que é necessário fortalecer a idéia da globalização
do desenvolvimento e crescimento para todos e da globalização dos direitos
humanos. Essa concepção orienta o enfrentamento da questão para a construção de
um contra discurso hegemônico, repensando as diferentes práticas que emergem da
relação Estado e sociedade.
Se esse
contra discurso for assumido como um dos lugares centrais na defesa dos
direitos humanos, a globalização dos direitos humanos só pode se constituir
como um discurso real e não ideológico, se refletir as contradições entre
desenvolvimento desigual do crescimento das economias das sociedades
contemporâneas e a barbárie social, tendo como uma de suas características a
fragilidade e a parca autonomia dos Estados Nações.
Na última
década, a globalização era vista apenas como sinônimo de extrativismo,
exploração e dominação, mas é importante incorporar, também, a esse conceito,
um discurso procedente de uma prática contra-hegemônica de enfrentamento do
tráfico de pessoas, como cultura política de pensar a construção de
conhecimentos e direitos, através da valorização de vários saberes que emergem
da luta de diferentes setores da população mundial (movimento de mulheres,
crianças e adolescentes, negros, homossexuais, trabalhadores da cana de açúcar,
bóias frias, trabalhadoras do sexo, etc.).
Essas
questões não estão resolvidas mundialmente, pelo contrário, a
própria globalização de mercado e o neoliberalismo têm fragilizado e
vulnerabilizado sujeitos violados sexualmente, seja pela precarização da
relações de trabalho, seja pela baixa inclusão nas políticas sociais ou por um
discurso legal, ainda moralista e repressor, que favorece a impunidade e provoca
pânicos morais.
Por outro
lado, os movimentos contra-hegemônicos estão em processo de construção e
fortalecimento da sua correlação de força e apresentam também uma série de
contradições em algumas práticas que desenvolvem no enfrentamento do fenômeno,
que às vezes não se sabe quem é governo e quem é sociedade.
Neste
contexto, o enfrentamento do tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual é, sobretudo, uma questão de redefinição da correlação
de forças existentes dentro dos Estados Nações e entre os blocos econômicos
hegemônicos (países do Norte e da Europa) e os blocos econômicos dos países da
América Central e sul Americanos e Africanos, numa perspectiva de mudança na
concepção de proteção das leis de mercado entre esses blocos. Também, é importante
rediscutir o pagamento da dívida externa dos países pobres para restaurar
socialmente o poder social do Estado, por meio da ampliação do acesso da
população às Políticas Públicas.
E, por
outro lado, é importante objetivar novas condições de inclusão da massa de
trabalhadores(as) no mercado de trabalho, na perspectiva de resgatar direitos
perdidos e fortalecer novos contratos sociais que desmobilizem a lógica da
exploração da força de trabalho em todas as suas expressões. Só assim, a crise
social e a barbárie social poderão ser enfrentadas com objetividade e armas
concretas para a construção de processos emancipatórios e a consolidação dos
direitos humanos.
Outra
tarefa política importante para enfrentar o tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual é avançar nas mudanças das normativas nacionais e
internacionais, avaliando os acordos bilaterais e tripartites já existentes,
numa perspectiva de alinhar estratégias globais de políticas públicas e
economias transnacionais de enfrentamento à pobreza, às desigualdades sociais e
às diversidades culturais para globalizar direitos, cidadania, desenvolvimento
e crescimento para todos.
O desafio
da sociedade civil, do poder público, da mídia, da academia e das agências
multilaterais, é o fortalecimento da correlação de forças em nível local e
global, para interferir nos planos e estratégias dos blocos hegemônicos, a fim
de diminuir as disparidades sociais entre países; dar visibilidade ao fenômeno
para desmobilizar as redes de crime organizado; e criar instrumentos legais e
formas democráticas de regular a ação do mercado global do sexo, a omissão do
Estado e criar mecanismos competentes que inibam a ação do explorador.
Já é uma
constatação, tanto em nível local como global, a frágil capacidade do Estado e
do terceiro setor de romperem com a relação de exploração e opressão em que
vivem as classes, raça, etnia, gênero, homossexualismo, transexualismo, dentre
outros, em sua histórica realidade de subalternidade.
A tensa
relação entre Estado e sociedade termina se transformando em um discurso
ideológico de negociação entre os próprios grupos que estão hegemonicamente no
poder, o que, de certa forma, enfraquece e despolitiza a relação da sociedade,
quando enfrenta o Estado, através dos seus governos, na direção de defender e
promover a emancipação das pessoas em situação de tráfico para fins sexuais.
Nesta
direção, é preciso repensar a autonomia da sociedade civil e, claro não deixar
de reconhecer que, mesmo com as contradições postas, no Brasil foi criada
recentemente a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, com a participação de alguns setores do Estado e da sociedade
civil.
Atualmente
está em processo a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, objetivando viabilizar na prática a referida Política. Assim, é
preciso repensar o atendimento e as práticas que hoje já estão sendo executadas
no Brasil em relação à temática.
Não que
se esteja descartando uma política de atendimento centrada numa assistência
imediata, ela tem que existir, a exemplo das ações que já estão em execução no
Brasil, pois é uma questão de direito assegurada. Entretanto, é importante que
essas ações possibilitem, também, a construção de uma prática institucional
capaz de fortalecer político e socialmente o sujeito explorado, numa
perspectiva de fomentar uma consciência crítica que eleve esse sujeito à
condição de cidadão. Essa deve ser a convicção da política de atendimento às
pessoas em situação de tráfico para fins de exploração sexual, caso contrário, essas
ações servem mais para alienar os sujeitos que para emancipá-los.
Uma
política pública para o enfrentamento do fenômeno deve ter como estratégia
fundamental - a articulação – entre as diferentes políticas e setores para
implementar uma concepção multidimensional e intersetorial na esfera do público
e dos movimentos sociais, o que certamente apressará os passos da política e o
do próprio Plano Nacional.
Uma
questão estratégica é viabilizar na prática um processo de informação, formação
e capacitação continuada e permanente dos profissionais que atuam no
enfrentamento do tráfico de pessoas na esfera pública e privada; promover uma
forte mobilização da sociedade civil para criar uma política de informação e
capacitação dos militantes e trazer para dentro do movimento as pessoas em
situação de tráfico, visando fortalecer a defesa dos direitos humanos no
contexto das políticas públicas por meio da politização dos sujeitos em
situação de tráfico para fins de exploração sexual.
Essa
é uma das tarefas importantes para que um outro mundo seja possível de ser
construído, isto é, com a participação política dos sujeitos violados, e não
somente pelos setores técnicos burocráticos do Estado e da sociedade civil.
É
importante, ainda, entender que este tema está imbuído de visões conservadoras,
principalmente por se tratar de uma violação relacionada à sexualidade e formas
distintas de prostituição, assunto de âmbito privado que, culturalmente, esteve
sob uma racionalidade moral-repressiva, objeto de tabu e de discriminação pela
sociedade e suas instituições. Tratar publicamente esta temática requer
confrontar os diferentes projetos de sexualidade e sua relação com a violência
sexual e com os projetos societários, inclusive os projetos relativos ao crime
organizado.
A nossa
tarefa é, então, ousar na formulação de uma concepção emancipatória para
fundamentar a direção política e cultural da sociedade, em relação à
sexualidade, à economia e à política.
Esta
compreensão possibilitará o fortalecimento de classes, de grupos étnicos,
afrodescendentes, mulheres, crianças e adolescentes, homossexuais e demais
relações societárias marcadas por violência, uma vez que devolve a este o lugar
de sujeitos de direitos e a centralidade da construção histórica por respeito,
oportunidades e direitos.
As
pessoas são exploradas não somente para atividades sexuais comerciais
(prostituição, turismo sexual, pornografia e tráfico para fins sexuais), mas
também para o trabalho forçado e escravo (na agricultura, na pesca, nos
serviços domésticos, na indústria e outros); extração de órgãos e para adoção,
recriando formas tradicionais de exploração e sacrifício, constituindo-se em
formas modernas de escravidão.
A
compreensão do fenômeno e suas formas de enfrentamento no Brasil têm sido
fundamentadas a partir de estudos e pesquisas desenvolvidos pela sociedade
civil e universidades, em parceria com o governo. Nesse sentido, há que se
destacar a importância da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e
Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial – PESTRAF/2001, que
aponta a existência do tráfico interno e internacional de pessoas para fins de
exploração sexual, promovendo uma articulação em âmbito nacional e internacional
por meio do conhecimento científico. Este, por sua vez, proporciona uma
articulação entre teoria e prática, à medida que os parceiros conhecem o
fenômeno e suas formas de enfrentamento, definem responsabilidades e
compromissos para enfrentarem o tráfico de pessoas por meio de ações de
mobilização em âmbito nacional, como comitês, CPMI, comissões, audiências
públicas em âmbito municipal, nacional e internacional, visando a mudança da
legislação interna (o que já ocorreu), a criação de Centros de Atendimento e
Proteção às Vítimas, a criação de uma Política Nacional e Plano Nacional,
dentre outras ações, demonstrando os avanços que o Brasil tem conseguido nesta
temática.
Entretanto,
para enfrentar o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, enquanto uma
violação da Lei e uma afronta à dignidade humana, o grande desafio não é só
incorporar os fundamentos políticos e teórico-metodológicos que possibilitem
uma análise mais profunda e multidimensional do fenômeno, no Brasil e em nível
mundial, a partir das questões socioeconômicas, culturais e de direitos; é
preciso, sobretudo, ousadia para enfrentar esta questão, não apenas para
demonstrar a crise da modernidade, da ética e da democracia, mas indicar que
existe uma sociedade indignada com as respostas dos sistemas de produção e de
valores e que acredita que outro mundo é possível.
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