Estela Márcia Rondina Scandola
A pergunta central que poderíamos nos fazer é se no centro
do nosso trabalho estão as pessoas traficadas ou, mais cotidianamente em nosso
trabalho, poderíamos localizar onde estão essas pessoas nas nossas organizações
e nos serviços de políticas públicas.
Considerar as pessoas como o centro do nosso trabalho
significa reconhece-las como seres históricos, detentoras de direitos,
sobretudo capazes de tomar decisões.
As vítimas do tráfico de pessoas, em geral, são apenas um
elemento do processo penal. A sociedade, majoritariamente penalizadora, em que
pese as garantias constitucionais e das convenções internacionais, a cada dia
tem recrudescido na busca de penalizaçao de um violador. Esta visão binária,
violador e vítima, encobre a responsabilização coletiva e complexa da situação
de tráfico e diminui nossa capacidade de efetivamente enfrentar essa barbárie.
Somente ouvindo atentamente as pessoas será possível compreender o conjunto de
responsabilidades sejam elas coletivas ou individuais que as sujeitaram às situações
de violência, insegurança, tráfico.
A condição de vítima transformada pelos processos penais,
não reconhece direitos às pessoas, especialmente de participar do processo de
decisão sobre sua vida. Na maioria das vezes, é apenas mais um elemento de uma
pasta de documentos que segue pelos tribunais ou ainda e, no caso do
atendimento, segue de serviço em serviço por meio dos encaminhamentos. Os
serviços públicos padronizados em conceitos e procedimentos se contrapõem
exatamente às necessidades de cidadãos autônomos. A cidadania torna-se um
empecilho diante dos critérios de atenção e regras de funcionamento do Estado.
Estar em situação de tráfico de pessoas, não significa que
as mulheres são seres vulneráveis. Significa que vivenciam as contradições do
viver com vulnerabilidades e fortalezas e, podem suplantar as
vulnerabilidades quando tem suas fortalezas potencializadas que lhes permita
participar decisivamente sobre a condução de suas vidas.
Poderíamos dizer, então, que as regras da sociedade
hegemônica fazem com que muitas organizações enfrentando o tráfico de pessoas
tenham este tema como o motivo de suas existências, no entanto sem ter as
pessoas no centro da sua ação.
Organizações da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres
- GAATW tentam um caminho diferente, centralizando suas ações na pessoa.
Ao revisitarmos várias de nossas experiências, percebemos
que o atendimento às pessoas em situação de tráfico é uma porta de entrada para
que componham conosco um aprendizado permanente de como enfrentar esse
desrespeito aos direitos humanos. As pessoas que passaram por uma situação de
tráfico têm o que ensinar e aprender e é nessa troca que vamos construindo uma
ação mais consistente para o enfrentamento.
As “vítimas de tráfico de pessoas” são fundamentais para
compreender os diferentes processos do seu viver que foram conformando um
conjunto de determinantes e condicionantes que lhe imputou estar em situação de
tráfico de pessoas.
O
acolhimento por meio de uma abordagem que leve em consideração o querer das
pessoas em situação de tráfico é um importante primeiro passo. A escuta ativa,
o respeito aos sentimentos, o atendimento das necessidades emergenciais, a
proteção da sua vida e o não julgamento são elementos que vão determinar nossa
continuidade da relação com as sujeitas ou vão finalizar o atendimento, a
construção ou não de vínculos. O momento inicial da atenção vai determinar os
caminhos que iremos percorrer: juntos ou separados; sujeitos ou objetos do
nosso trabalho; pacientes ou cidadãos das políticas públicas.
Escutar uma
mulher no aeroporto, numa boite ou numa oficina de costura, em todos os
lugares, o mesmo desafio: o caminho a partir do encontro de cidadãos.
No processo jurídico, uma grande quantidade de papéis
falando das circunstâncias criminais, as mulheres podem compor a fala dos
direitos das vítimas, se consideradas como centrais na garantia dos direitos.
Isso inclui aquelas que injustamente compõem a lista de acusadas ou
consideradas coniventes de crimes e, por ação das políticas públicas, como as
polícias, tiveram suas vidas arrasadas e comprometidas publicamente.
Na defesa jurídica, considerar as pessoas em situação de
tráfico como sujeitas, pode alargar o pensamento jurídico penalizante em
direção à responsabilização ampla, incluindo agressor, Estado e sociedade. A
pessoa traficada exercendo seus direitos civis, trabalhistas e penais é um
exemplo de autonomia, resistência e reivindicação em que a vítima toma para si
um papel ativo de autor na esfera jurídica.
Nesta possibilidade das vítimas jurídicas se tornarem
cidadãs de direitos, será possível denunciar a trama institucional
excludente, machista, criminalizadora da pobreza e da sexualidade liberta.
No trabalho educativo, a radicalização necessária do método
de educação popular, não há lugar para um saber acadêmico que se sobrepõe ao
saber de quem vivenciou uma situação de tráfico. Envolver pessoas
nas nossas organizações que viveram
situações de violência nas suas vidas, parece aos nossos olhos, uma ação da
rotina. Porém, para o conjunto da sociedade pode parecer a desqualificação da
equipe, o perigo de não ser sério o trabalho. Manter essa nossa posição parece
ainda um grande desafio se considerarmos o corolário de pré-conceitos que
pairam sobre as pessoas em situação de violência que, na maioria das vezes,
passam de vítimas a culpadas.
Na incidência política, considerar a participação das
pessoas que são partícipes destes mesmos direitos no nosso trabalho, confere a
estas o nosso reconhecimento que necessitamos deixar de ser intermediários nas
conquistas de direitos. Mais que isso, significa apostar na participação de
organizações importantes como dos migrantes, das trabalhadoras sexuais, dos
movimentos raciais, dos movimentos de mulheres, de crianças, dos povos indígenas.
Neste desenho, o protagonismo do enfrentamento ao tráfico de
pessoas não estaria centrado apenas nas organizações da sociedade civil, mas no
conjunto dos movimentos que fazem o contraponto das ideologias dominantes. As
organizações colocando-se a serviço de potencializar os movimentos e o trabalho
em rede para a atenção às pessoas em situação de tráfico como porta de entrada
para a as redes de luta e brilho da cidadania.
Por fim, se estamos considerando então que são as vítimas
(juridicamente falando), sujeitas cidadãs que tem potencialidades para
construção das nossas histórias coletivas, o eixo pesquisa, presente em
praticamente todas as nossas organizações, só tem razão de ser se levar em
conta que o método é fundamental e precisa considerar os sujeitos sociais.
As sujeitas da pesquisa não podem ser um item da formalidade
dos projetos de pesquisa, mas o rol de pesquisadoras. Pesquisa-ação, pesquisa
participante constituem-se em desafios e formas de transformação dossujeitos de
pesquisa em sujeitos na pesquisa. É transpor o
conhecimento acadêmico para um conhecimento que brota da realidade vivida,
pensada e organizada para dispor aos demais da sociedade.
São suas experiências de vida que constroem novas bases de
conhecimento sobre a realidade do tráfico de pessoas que, por vezes a academia,
tão repleta de regras e métodos, não consegue apreender o real porque lhe
escapam os códigos encarnados na complexidade dos direitos violados e os
significados e significâncias que só são possíveis de serem apreendidos por
quem os domina com a própria história.
Não se trata, desta forma, de pautar a nossa ação no
aprofundamento do fosso entre o que temos de políticas públicas e seu
distanciamento das pessoas em situação de tráfico, mas construir pontes e atalhos
que permitam que encontros possam ser estimulados. Mas, fundamental e
definitivamente, que nenhuma política possa continuar sendo feita sem que os
destinatários dela sejam o centro do processo de construção participativo.
O nosso papel de sociedade civil, de estar sempre a
frente do que está sendo viabilizado pelos Estados Nacionais, pela capacidade
criadora, de denúncia e de pressão, nos permite sonhar que outro mundo é
possível, necessário e, em algumas poucas ilhas de cidadania, já está sendo vivenciado.
A Convenção contra o Crime Organizado e seus protocolos,
entre estes, o Protocolo contra o Tráfico de Pessoas (Protocolo de Palermo) é a
marca legal internacional que orienta as políticas públicas na maioria dos
países. Tanto nacional, quanto internacionalmente, o seu conteúdo e
implementação precisam de controle a partir da sociedade civil. Neste
controle, com a participação das pessoas em situação de tráfico, reside o nosso
desafio neste momento em que se avalia e monitora a ação dos Estados-parte e
das organizações multilaterais para implementar suas determinações e
compromissos assumidos.
Entre as diferentes possibilidades que temos de construir um
monitoramento do Protocolo, sem dúvida, a primeira, é torna-lo conhecido às
pessoas e às organizações de base. Atualmente sabemos que há uma sociedade
civil global que participa das atividades das diferentes instâncias da ONU. No
entanto, milhares de pequenas organizações que estão fora dessa inclusão
globalizada sequer têm conhecimento da existência ou das possibilidades de
utilização do Protocolo de Palermo como instrumento de garantia de direitos a
vítimas do tráfico de pessoas.
Definir mecanismos de monitoramento do Protocolo de Palermo
com enfoque nas pessoas em situação de tráfico, significa ouvi-las em todas as
instâncias dos processos de consulta, sobretudo envolve-las em processos de
avaliação que considere as diferentes falas dos Estados-partes em toda a sua
complexidade: governos, organizações da sociedade civil, incluindo aí a
oitiva direta das pessoas e procedimentos que consigam confrontar discursos
contraditórios tão necessários na avaliação de políticas públicas.
Para a definição de mecanismos de monitoramento e
implementação do Protocolo de Palermo é necessária a definição de papéis,
processos e, o mais importante, metas que comprometam os diferentes segmentos
sociais para que o monitoramento não seja apenas de documentos mas considere a
vida das pessoas, os impactos que sofreram com as medidas anti-tráfico e as
ações que foram implementadas pelas políticas públicas.
É importante que o monitoramento incorpore a participação
autônoma das organizações da sociedade civil, considerando, inclusive que, em
muitos países, isso pode significar retaliações contra essas mesmas
organizações. O monitoramento pode e deve ser um momento de avanço no olhar
sobre a nossa realidade e no re-desenho de políticas e ações que incorporem a
garantia dos direitos humanos como o marco do enfrentamento ao tráfico de
pessoas.
Em todos os processos, há que se considerar que é na ação
dos países que vão se configurar as diferentes instâncias de participação da
sociedade. Os procedimentos internacionais e nacionais devem estar alinhados
nos mesmos princípios consignados pelos avanços democráticos conquistados pela
sociedade
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